No ano que passou, escrevi, neste espaço, que 14 de janeiro é dia de luto para o Amazonas, porque marca a tristeza insuperável e imperdoável do início da falta de oxigênio nos hospitais públicos de Manaus, inclusive nos centros de terapia intensiva, então absolutamente lotados por pacientes portadores de consequências da COVID-19, que a todos assustava em níveis incontroláveis, mundo afora, com o vírus maldito atacando, fazendo sofrer e causando a morte, como se nos estivéssemos aproximando do final dos tempos.
Volto ao tema porque considero que não temos direito de esquecer a barbárie que se instalou nas casas que deveriam ser de defesa e de preservação da saúde humana, com pacientes que rogavam, certamente em prantos que não controlavam e enquanto tinham forças para gritar a dor, por um socorro que não chegava, por um simples ar que lhes permitisse o primário e primeiro dos direitos da vida: respirar.
Nas ruas, parentes em desespero igual choravam impotência, enquanto outros corriam, igualmente descontrolados, para filas intermináveis que se formaram em frente a empresas que vendem oxigênio engarrafado e que se punham de volta ao hospital na esperança de chegarem a tempo de salvar a vida pela qual tanto lutavam, muitas vezes em vão, daquele ou daqueles a quem amavam.
Não tive a desventura, sob bençãos de Deus, de viver esse tempo infernal vitimando nenhum parente, portanto não estou falando de dores no próprio coração, mas não consigo ficar indiferente a tantos que, neste 14 de janeiro, transcorridos dois anos, estarão em lágrimas por entes queridos que, não fora a incúria dos que tinham o dever funcional de evitar o desastre, talvez ainda pudessem estar em seu convívio, ou, pelo menos, não teriam conhecido o desfazimento da vida terrena com requintes de inimaginável crueldade.
Não consigo avaliar o desespero de médicos, residentes, estagiários, enfermeiros, assistentes, auxiliares, tantos que dedicam suas vidas, muitas vezes em jornadas que se estendem por todo o dia, a salvar vidas de quem sequer conhecem, na maioria das vezes, ao se sentirem incapazes de exercer esse sagrado mister. De que adiantavam todos os aparelhos modernos, de tecnologia avançada, ligados a tantos fios e cabos, que compõem unidades de tratamento intensivo – que tantos serviços prestam à vida humana e à saúde, inclusive com a reanimação cardiorrespiratória, popularmente chamada de ressuscitamento – se ao paciente faltava o ar que as máquinas lhe deveriam fornecer? Não havia conhecimento científico capaz de lhes permitir o trabalho e o que restava era, certamente, assistirem atônitos, revoltados, angustiados, sofridos, ao fim tão desumano, inimaginável até então, de tantas vidas, umas seguidas de outras, ou até muitas ao mesmo tempo, como se ali se tivesse instalado um inferno.
O Amazonas foi, em 14 de janeiro de 2021, exemplo de vergonha e falência do sistema público de saúde para o Brasil e para o mundo inteiro. E tudo por descaso ou descuido, para dizer o mínimo, dos que tinham o dever de não permitir tal descalabro, tanto mais quando, na condição de agentes públicos superiores, haviam sido prevenidos pela empresa fornecedora do precioso elemento essencial à rede de saúde de que sua capacidade de produção mostrava-se progressiva e perigosamente comprometida com o crescimento da demanda. Um desastre anunciado e não evitado que nos envergonhou a todos diante do mundo e lançou o pesar e a dor da perda irreparável sobre milhares de famílias.
Eis porque continuo a dizê-lo dia de luto para a história do Amazonas.
Mas como viver mistura tristezas e alegrias, choros e sorrisos, mortes e nascimentos, começos e fins, 14 de janeiro é também dia de festa no bairro com essa denominação, sob as bençãos de Nossa Senhora de Fatima, que ali tem sua bela casa de oração, construída entre 1942 e 1975, por dedicação de muitos portugueses moradores do lugar, recebendo milhares de fiéis que, ajoelhados ante a Divindade, fazem fé à vida, à paz e ao amor.
Ali é o berço do samba, sede da Escola Verde e Rosa, fundada em 1975 na casa da Tia Lindoca, tendo como criadores, dentre outros, Seu Fernando, Chiquito, Zé Ruidade, todos descendentes dos que haviam fundado a “Escola Mixta da Praça 14”, de que a “Vitória Régia” se fez sucessora. Uma das duas mais antigas agremiações do samba em Manaus, juntamente com a Andanças de Ciganos, da Cachoeirinha, a Escola de Didi Redman guarda muitos títulos de campeã do Carnaval, dentre os quais o de 2010, quando desfilou, dançou e cantou homenagem à Academia Amazonense de Letras.
Também é o lugar que viu meninos o professor, deputado e governador José Melo, o mestre em Odontologia doutor Francisco Saraiva, o artista Oscarino Farias Varjão, ventríloquo que com seu boneco Peteleco encantou e divertiu jovens de todas as idades por muitos anos em Manaus, o advogado Nestor Nascimento, que tive o privilégio de ter como aluno na velha Faculdade de Direito da Praça dos Remédios, dentre tantos que, formados no Colégio Estadual, contribuíram, muitos ainda o fazem, para o desenvolvimento deste Estado e de nossa gente.
A Praça 14, como é conhecida, fez-se quartel da luta pelo respeito à negritude a que Nestor dedicou sua vida, fundando a Associação dos Moradores e Amigos daquele bairro e, especialmente, o Movimento Alma Negra – MOAN, havido por muitos como a primeira organização de estudos e defesa intransigente das causas negras no Amazonas. É ali que se guardam até hoje, com todo orgulho, e se as festejam, as tradições que Dona Maria Severa do Nascimento Fonseca deixou há mais de 130 anos, no Quilombo abençoado por São Benedito, criado por muitos ex-escravos e seus descendentes, que vieram do Maranhão para trabalhar em obras do governo de Eduardo Ribeiro, também maranhense, principalmente na construção do Teatro Amazonas, nosso encanto.
Os mais de 12 mil habitantes da antiga Praça da Conciliação, guardiã das mais belas tradições afro-brasileiras em Manaus, estarão em festa no 14 de janeiro, com certeza cantando e dançando os sambas que já criaram ou viram criar e festejando os ancestrais filhos de São Benedito e os devotos da Virgem de Fátima.
Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas