Artigo de Lourenço Braga: FANATISMO

Professor e ex-Reitor da UEA Lourenço Braga

Quando eu era criança, morando ali na Avenida Ayrão, sabia que a disputa que mais empolgava, no futebol, dava-se entre Flamengo e Fluminense, do Rio de Janeiro. Um FlaxFlu levava ao Maracanã milhares de pessoas, crianças acompanhando os pais, estes que, algumas vezes, sentavam separados, cada qual no espaço da torcida de seu time. Era uma grande festa, que em verdade começava bem antes do domingo, e alguns desentendimentos ocorriam, levando até a vias de fato os mais apaixonados, que dependuravam bandeiras nas sacadas dos apartamentos, ou as ostentavam nos poucos carros que por ali trafegavam. Mas não se tinha notícia de apedrejamento de ônibus que conduziam os atletas, os verdadeiros artistas do espetáculo, ou de agressão física a goleiro do time adversário, como aconteceu na ultima quarta-feira no Rio e em Santos.

Aqui, era igual entre Nacional e Rio Negro, o clube da Saldanha Marinho, que anos depois meu amigo Evandro Paes de Farias veio a dirigir, contra o  da Praça da Saudade, de Robério, ou o Leão da Vila enfrentando o Galo Carijó, mesmo que houvesse o Fast Clube, dos irmãos Piola, e o América, de Artur e Amadeu Teixeira, onde brilhou João Braga.

Em São Paulo, Corinthians e Palmeiras disputavam, como ainda hoje, a preferência dos torcedores, muitos dos quais exagerados em suas manifestações públicas, organizados ou não em torcidas numerosas, barulhentas e por vezes violentas.

Depois, no Rio, os flamenguistas passaram a rivalizar mais fortemente com os vascaínos, e uma partida entre os times desses clubes passou a levar mais público ao Estádio Mário Filho, e ainda hoje é tal a dissidência que muitos torcedores há que sequer pronunciam o nome do adversário.

É assim que se dá, também, na belíssima e extraordinária festa realizada na Ilha Tupinambarana, no Interior do Amazonas. Há, nitidamente, em Parintins, duas nações: o povo  azul, que capricha o ano inteiro na preparação de suas três apresentações no Festival, e os vermelhos, que garantem, com ousadia sem limite, a beleza inigualável do maior encontro folclórico do planeta.  E como acontece entre vascaínos e flamenguistas, os mais apaixonados pelo Garantido sequer pronunciam o nome do Caprichoso, e vice-versa, como fazem Narciso e Simão Assayag, na arena ou fora dela, nas toadas de desafio de seus Amos ou nas demais belas canções que fazem vibrar as torcidas convenientemente separadas em lugares que a cor respectiva identifica.  Não, definitivamente não. É o “Contrário”, e isso não se discute. E há até casas  pintadas nas cores da preferência, vermelhas na Baixa do São José, azuis na terra dos Caprichosos.

Em Manacapuru, Flor Matizada, Guerreiros Mura e Tradicional rivalizam em belíssima festa das Cirandas, levando à plateia de suas apresentações, além de turistas de vários lugares do Brasil e do mundo, torcedores que a elas dedicam paixão extrema.

Bem por isso que já se disse, certa vez, que são as paixões que movem o mundo dos humanos. As disputas, que só por si geram o óbvio interesse de vencer, desafiam a inteligência, a dedicação, o cuidado, o interesse e fazem com que cada um “dê o seu melhor” em busca de ultrapassar os que com ele competem.

E isso é de todo saudável. É o que faz a maravilha das Olimpíadas, dos Jogos de Inverno, dos Campeonatos do Mundo de diferentes modalidades esportivas, levando competidores à superação de suas próprias forças, de seus limites, com vistas aos melhores tempos, aos recordes, aos mais altos rendimentos.

Há, entretanto, e não são poucos, os que ultrapassam as fronteiras da paixão, deixando-se inteiramente dominados e permitindo-se gerar internamente sentimentos reprováveis e incontroláveis, capazes de conduzir à prática de delitos.

São muitos os exemplos que se pode elencar do fanatismo. No campo religioso, a intolerância parece ser tão antiga quando a própria Humanidade, com histórias tradicionais e atuais de mártires de suas próprias crenças. Assim também no âmbito esportivo. No Brasil mesmo já chegamos a ter torcidas organizadas proibidas de frequentar praças esportivas, à vista de crimes, até de homicídio, praticados por seus integrantes. E assim também ocorreu na tradicional Inglaterra, com destruição parcial de arquibancadas de estádios de futebol e agressões que chegaram ao enfrentamento policial, com resultados de todo lamentáveis e reprováveis. Nos Estados Unidos da América do Norte não são poucos os exemplos de assassinatos em massa cometidos em escolas e em praças públicas sem nenhum motivo imediatamente aparente.

Na esfera política acontece o mesmo, desde sempre. Há menos de dois anos, partidários de candidato derrotado em reeleição invadiram o histórico templo do Senado e da Câmara dos Representantes, um dos mais belos e tradicionais prédios de Washington, o Capitólio. E o fizeram incentivados pela ideia de fraude na computação dos votos, responsável pela derrota de seu candidato-presidente. Não foi pouca a destruição que por lá deixaram.

Aqui houve, em 5 de agosto de 1954,  na rua Tonelero, no Rio de Janeiro, então Capital Federal, tentativa de assassinato do jornalista e político Carlos Lacerda, que resultou na morte do major Vaz, da Força Aérea Brasileira, tudo sob o comando de pessoa muito próxima do Presidente da República, Getúlio Vargas, que, a 24 do mesmo mês, chegou ao suicídio em razão do agravamento da crise política instaurada. Em 1964, a tomada de poder pelos militares e quatro anos depois o famoso AI-5, com prisões e mortes praticadas por fanáticos defensores do novo regime e expulsão de brasileiros de seu próprio país, segundo registros históricos. Do outro lado, sequestro de representante diplomático de país amigo, assalto a mão armada e crimes outros, tudo sob justificativa de “consciência política.”

No século passado, no Amazonas, um governador foi obrigado a fugir da residência oficial na madrugada, em trajes de dormir, para evitar sua prisão. Na França, a invasão da sede de um jornal fez mortos profissionais da Imprensa que desagradaram aficionados fanáticos do governo de então.

Há pouco mais de uma semana, no Estado do Paraná, na bela Foz do Iguaçu, a morte de um brasileiro assassinado por outro que não tem as mesmas escolhas políticas movimentou a grande Imprensa e as redes sociais, pela estupidez da motivação do fato. Acabo de ler que uma Juíza de comarca do Interior de Minas Gerais vem de anunciar, em reunião que realizou com representantes de agremiações políticas, que não permitirá a exibição ou o porte da bandeira nacional, porque ela identificaria um dos candidatos a presidente e isso faria desequilibrado o pleito.

A questão é que no Brasil deste tempo enfrentamos perigosa polarização, que nos faz obrigatoriamente contrários a um se favoráveis a outro, que medem forças, legitimamente, é claro, em busca de convencimento de eleitores. Mas, a meu juízo, aprovar determinada atitude de um dos disputantes não é ser necessariamente adversário do outro. Quem não se deixa dominar pelo fanatismo, reconhece méritos e proclama defeitos, permanecendo distante dos polos extremos em que se colocaram as escolhas ditas preferidas. E é tal a exacerbação, que chega a envolver autoridades da República, dos Poderes constituídos que, por teoria, deveriam primar pelo equilíbrio, com vistas à manutenção da paz. E ainda temos quase três meses para o final das eleições em segundo turno, se houver…

Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas

lourencodossantospereirabraga@hotmail.com

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